27 de
Outubro de 2016
Dias atrás, divulgou-se em tom de
celebração a noção de que a denúncia de Lula junto ao Conselho de Direitos
Humanos da ONU sequer fora aceita para um exame prévio num organismo conhecido
por iniciativas corajosas, que já beneficiaram cidadãos do mundo inteiro,
inclusive Julian Assange, criador do Wikileaks. Bobagem.
Como a própria ONU foi levada a esclarecer em
comunicado oficial, a denúncia, naturalmente em fase inicial, segue as formalidades
de praxe. Não houve, até agora, nenhum julgamento de mérito -- nem era o caso.
A acusação foi devidamente registrada na
instituição, que deu um prazo de dois meses para uma resposta das autoridades
brasileiras. Resumo: ninguém sabe o que vai acontecer daqui para a
frente, mas o caso começou a andar, cumprindo uma primeira etapa burocrática
nos rituais da entidade. Mais uma vez, grandes jornais brasileiros mostram sua
incorrigível capacidade de confundir a realidade com seus próprios desejos.
A pressa em dar por encerrado um caso que sequer
havia começado envolve um comportamento fácil de entender pelo espírito
vira-lata de parte da elite brasileira. Ela cultiva um temor reverencial por
qualquer iniciativa que possa comprometer a chamada "imagem do país"
em Miami ou Paris, mas não dispensa a mesma atenção ao que se fala e se ouve na
Rocinha ou Osasco.
Para quem sobrevive num universo feito para poucos,
embora alimentado pelo suor de muitos, os fatos sempre serão menos importantes
do que sua capacidade de escondê-los.
Nos tempos da censura do regime militar, a imagem
externa era uma obsessão permanente dos generais. Compreende-se. Era a partir
do exterior que o país respirava uma liberdade oprimida por aqui. Em outra fase
da história, num país submetido a lógica opressiva do pensamento único uma
denúncia na ONU pode produzir um efeito semelhante.
Neste aspecto, a denúncia de Lula tem um impacto
único. Sua fonte não é um líder dissidente, respeitável mas pouco
influente, como acontece com a maioria das personalidades que, sem respostas
adequadas da Justiça de seu próprio país, vão bater às portas de organismos
internacionais.
O caso diz respeito ao mais popular presidente da
história do país que abriga a sétima economia do planeta, um chefe de governo cujo
partido venceu quatro eleições presidenciais consecutivas e por inúmeras vezes
discursou na cerimônia de abertura anual da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Basta recordar o tom de aberta desconfiança dispensada ao golpe contra Dilma
para prever o tratamento que a parcela mais respeitada da mídia internacional
pode dispensar ao caso, quando os dados da caçada a Lula forem mais
conhecidos.
No Brasil de 2016, os métodos de investigação da
Lava Jato, que estão na base da denúncia levada a ONU -- são apresentados em
ambiente de celebração cívica. Como é inevitável nessa situação, toda crítica é
apresentada de forma interesseira como falta de patriotismo e mesmo
cumplicidade criminosa.
Qualquer esforço de oxigenar um debate
necessário é apresentado como risco e ameaça. Responsáveis pela animação do
espetáculo, os meios de comunicação tentam construir um ambiente artificial de
unanimidade, no qual uma discussão de base jurídica, que envolve fatos, provas
e direitos democráticos, é apresentada como um julgamento de natureza moral,
típico para medidas de ódio e violência.
Os brasileiros irão acompanhar com imenso interesse
as explicações do governo Temer sobre episódios mencionados na denuncia, como a
condução coercitiva de Lula e a divulgação de um diálogo com Dilma Rousseff
gravado de forma ilegal. Num ambiente onde os direitos democráticos estão
preservados, é complicado ganhar tudo no grito.
Mesmo considerando que a ONU é um organismo formado
por 195 países, com interesses econômicos e diplomáticos que tem influência
decisiva na tomada de suas decisões, o que não permite apostar de saída num
resultado favorável, é fácil entender o receio vira-lata diante do caso, certo?