O mistério
dos 158 corpos de africanos escravizados jogados num lixão em Portugal
Vicente G. Olaya 02/04/2019
© Dryas Arqueología LDA Restos de um africano escravizado encontrados
em Lagos (Portugal).
A Europa reabriu em 2009 as bocarras
dos infernos quando a Prefeitura de Lagos – hoje uma plácida, ensolarada,
turística e bela cidade do Algarve português – decidiu construir um
estacionamento subterrâneo alguns metros além de suas muralhas medievais, em
uma área urbana conhecida como Vale da Gafaria. As escavadoras iniciaram seu
trabalho e começaram a brotar dezenas de ossos de seres humanos. Maria Teresa
Santos Ferreira, professora de Antropologia da Universidade de Coimbra, foi ao
local com sua equipe.]
Hoje, dez anos depois, os resultados de sua
pesquisa foram publicados no International
Journal of Osteoarchaeology: eram os corpos de 158 africanos escravizados, cujos restos foram
abandonados em um depósito de lixo no começo do século XV. Arrancados de sua
terra pela violência e vendidos por traficantes, muitos deles não conseguiram
suportar a viagem à Portugal. As ossadas de
homens, mulheres e crianças – seis dos quais foram lançados ao depósito com pés
e mãos amarrados com cordas – demonstram as circunstâncias desumanas das
primeiras explorações portuguesas pela costa oeste do continente.
© Dryas Arqueología Ltda. Santos Ferreira, com um dos
restos humanos de Lagos.
O Infante Henrique o Navegante (1394-1460)
foi o primeiro dos grandes exploradores dos mares da África e das ilhas do
Atlântico. Suas caravelas sulcavam as costas partindo do maior porto do sul do
reino, Lagos, uma cidade que logo se transformaria no grande bazar europeu de
carne humana. “Os escravos”, diz Santos Ferreira, “vinham das batidas feitas na
parte ocidental do continente, assim como da compra dos traficantes muçulmanos,
que por sua vez os traziam do interior da África”. Por isso, as análises
determinaram que os enterrados vinham de populações banto (fundamentalmente na
África subsaariana, com exceção do sul e da costa leste).
Os barcos portugueses chegaram
pela primeira vez em 1444 ao litoral do Senegal e logo retornaram ao porto de Lagos
carregados de mercadorias, incluindo pessoas escravizadas, diz o relatório. Mas
em 1512, o rei Manuel I ordenou que Lisboa tivesse a exclusividade do tráfico
de escravos. De qualquer maneira, e ainda que Lagos tenha perdido importância,
as naus continuaram chegando a esse porto antes de alcançar a capital.
Não se sabe quantos africanos escravizados entraram
em Portugal nesses séculos, porque os arquivos se perderam durante o terremoto
de Lisboa em 1755. Mas se calcula que entre
1441 e 1470 chegaram por volta de mil africanos por ano e quase 2.000 anuais
nas duas décadas seguintes, um número que se manteve estável e diminuiu a
partir de 1530.
O estudo – do qual, além de Santos,
participaram Catarina Coelho a, João de Oliveira Coelho, David Navegaa, Sofia
N. Wasterlaina e Ana Rufino e que contou com o apoio do Archaeological
Institute of America e da Fundação Gerda Henkel – estabelece que os corpos
foram colocados no depósito de lixo entre os séculos XV e XVII, e que muitos
daqueles infelizes sofreram em vida traumatismos e lesões degenerativas. Os
especialistas analisaram o sexo de 88 deles (56,31% de mulheres, 29,13% de
homens e o restante indeterminado). A idade de sua morte foi estabelecida entre
os 20 e 30 anos em 32% dos casos, os 30 e 40 anos para 40% e 6,59% com mais de
40 anos.
© Excavación del aparcamiento, en el centro el vertedero con los
cuerpos. (Dryas Arqueologia Ltda.) Escavação do estacionamento, no
centro o depósito de lixo com os corpos.
Além dos adultos, a equipe da empresa
Dryas Arqueologia LTDA. encontrou também 31 menores (“não-adultos”), em muitos
dos quais foram detectadas alterações nas dentições e um atraso no crescimento.
De acordo com o estudo, os menores foram expostos “a duras condições”, o que
lhes provocou déficits nutricionais que se refletem em suas estruturas ósseas,
com osteoporose cranial e falta de esmalte nos dentes. Isso, por sua vez,
evidencia suas “duras e curtas vidas”.
Os antropólogos, entretanto,
vislumbraram algum sinal de humanidade no enterro dos menores, já que em 66,7%
dos casos “parecem ter sido enterrados com mais cuidado do que os adultos”.
Desses últimos, 79,4% não seguiam a “habitual orientação cristã da época, com a cabeça na direção
oeste e os pés na direção leste”.
Naquela época, somente as pessoas
batizadas podiam ser enterradas dentro da cidade. “Os escravos, evidentemente,
não eram, de modo que seus corpos foram depositados nos depósitos de lixo, como
poderia acontecer, por exemplo, com os animais. Essa situação mudou
posteriormente e passaram a ser enterrados dentro da cidade”, diz Santos
Ferreira.
Nos corpos analisados, foram
encontradas evidências de que quatro mulheres, um homem e um menor de idade
foram amarrados antes de morrer, o que deixa claro como esses “indivíduos
escravizados foram tratados, mesmo na hora de sua morte”.