Em 20
anos, 90 mil pessoas desapareceram no Brasil, segundo cálculos da ONG de
direitos humanos. Distante da sociedade, polícia brasileira é despreparada e
violenta, afirma assessor de direitos humanos da Anistia.
O caso do pedreiro Amarildo de Souza, recentemente
desaparecido na favela da Rocinha, é um exemplo da "cultura de
brutalidade" da polícia brasileira, avalia o assessor de direitos humanos
da Anistia Internacional no Brasil, Maurício Santoro.
Em entrevista à DW Brasil, o especialista destacou
que milhares de pessoas desapareceram no Brasil – 90 mil somente nos últimos 20
anos – e que o caso do pedreiro só chamou a atenção por acontecer num momento
em que a sociedade está mobilizada.
Não fosse o contexto atual de protestos no país,
Amarildo simplesmente teria entrado nas estatísticas "como mais um homem
negro e pobre, que é morto e desaparece", diz Santoro. O caso
"exemplifica de modo trágico os principais dramas e contradições da
política de segurança pública do Rio de Janeiro", considera.
"O governador disse que era inadmissível que
um trabalhador desaparecesse após ser interrogado pela polícia. Ora, é
inadmissível que qualquer pessoa desapareça após ser interrogada pela polícia,
mesmo que essa pessoa seja um criminoso, o que evidentemente não era o caso do
Amarildo", afirma.
Em relação ao também recente julgamento do massacre
do Carandiru, o representante da Anistia Internacional avalia a condenação dos
policiais como positiva, por sinalizar que uma parcela da sociedade não está
mais disposta a aceitar a brutalidade policial. Os aspectos negativos são o
tempo que foi necessário para que os julgamentos acontecessem e o fato de os
responsáveis políticos não terem sido julgados.
Para Santoro, há um abismo entre a polícia e a
sociedade brasileira. A maneira como as polícias estão organizadas dificulta o
trabalho dos bons policiais, avalia. "Existem muitos policiais que querem
fazer algo diferente", diz.
DW Brasil: Alguns casos envolvendo a conduta das polícias
brasileiras têm inspirado questionamentos sobre o preparo dos policiais e a
transparência das operações. Essas discussões muitas vezes apontam para o
despreparo das forças policiais brasileiras como sendo a origem desses
problemas. O senhor concorda?
Maurício Santoro: Entre outros problemas, há o despreparo. Por
exemplo, no caso da repressão policial aos protestos ficou muito claro, em
muitos momentos, que a polícia não sabia o que fazer diante de uma situação em
que tinha que dispersar uma manifestação, ou como se faz para dispersar uma
manifestação, enfim, todas essas regras básicas. Houve até mesmo várias
declarações, tanto da polícia militar do Rio quanto da polícia militar de São
Paulo, a respeito dessa falta de preparo, reconhecendo que era necessário um
treinamento melhor.
Mas a falta de preparo explica apenas parte dos
problemas. Ela não explica tudo de errado que tem acontecido com a polícia. Por
exemplo, quando a polícia tortura alguém, quando acontece um crime de tortura
ou uma execução sumária, isso não vem da falta de treinamento. Isso vem de uma
cultura de brutalidade, uma cultura de violência, da dificuldade de a polícia
ser controlada e prestar contas, e também de uma relação que, em geral, é muito
ruim entre a polícia e a sociedade. Isso é fruto de uma longa história de
violência, de corrupção, de incapacidade de a polícia assegurar os direitos da
população, de garantir a segurança do público.
Quando acontece uma situação de crise, como essa
que a gente tem vivido nos últimos dois meses, esse abismo entre sociedade e a
polícia fica muito mais evidente. Mas ele não nasceu agora.
Um caso recente que causou comoção nacional é o do
pedreiro Amarildo, que não é visto desde que foi levado por policiais para a
UPP da favela da Rocinha, em julho. Como a Anistia Internacional avalia o
tratamento que as autoridades brasileiras vêm dando ao caso?
O
Amarildo, infelizmente, não é um caso isolado no Brasil. A estimativa que temos
é que, nos últimos 20 anos, em torno de 90 mil pessoas desapareceram no Brasil.
É um número extremamente elevado. Os corpos nunca foram encontrados, esses
assassinos nunca foram punidos.
O Amarildo tem um perfil muito parecido com o da
situação mais vulnerável do Brasil: ele é um homem pobre, morador de uma
favela. Ele só não tem o perfil clássico porque não era jovem. Ele já era um
homem de 40 e poucos anos e, em geral, essa vítima tem 18, 19 e até 25 anos.
A primeira reação da polícia – quando houve a
denúncia do desaparecimento – foi muito ruim, foi insinuar que ele seria um
bandido porque teria uma passagem por roubo na polícia. Depois se comprovou que
não era nada disso. Na verdade ele trabalhava como flanelinha e teve uma
discussão com um cliente, o cliente o acusou de furto, e depois nada se
comprovou.
E mesmo que ele fosse um ladrão, isso não dá à
polícia o direito de desaparecer com suspeitos. Aliás, a própria fala pública
do governador foi muito preocupante nesse aspecto. Ele disse que era
inadmissível que um trabalhador desaparecesse após ser interrogado pela
polícia. Ora, é inadmissível que qualquer pessoa desapareça após ser
interrogada pela polícia, mesmo que essa pessoa seja um criminoso, mesmo que
ela seja culpada, o que evidentemente não era o caso do Amarildo.
O próprio fato de ele ser levado para a UPP já é
questionável. A PM não é polícia judiciária. Ele deveria ser levado para uma
delegacia, ele deveria ter sido interrogado numa delegacia de polícia, e não
numa UPP, também por conta dessa falta de registros, dessa falta de material
para fazer um controle, uma supervisão mais séria do que está acontecendo nas UPPs
[em referência às câmeras quebradas e à falta de informação dos aparelhos de
GPS das viaturas].
Com a repercussão do caso, as autoridades rebatem
críticas de que a imagem das UPPs estaria afetada. O que esse caso diz sobre as
UPPs, na opinião da Anistia Internacional?
Na nossa visão, a UPP é um passo adiante, é uma
política importante, tem dado resultados positivos, mas ela não é uma varinha
de condão que vai resolver todos os problemas da polícia num passe de mágica. E
uma dessas dificuldades é que a polícia que está na UPP á a mesma polícia que
está no resto da cidade, envolvida numa série de ações violentas.
Não houve, por exemplo, um esforço de reforma da
polícia. A polícia continua tendo uma cultura muito violenta. Em muitos casos –
não em todos, mas em muitos casos – continua a ver os moradores das favelas
como inimigos ou, pelo menos, como suspeitos em potencial.
Em junho, uma ação policial no conjunto de favelas
da Maré resultou na morte de dez pessoas. No caso da favela da Maré, o comando
nega execução, mas o caso vai passar por uma avaliação técnica. O
secretário-geral da Anistia está no Brasil e visitou o local. Como o senhor vê
esse tipo de ação da polícia brasileira?
Começamos a atuar na Maré por solicitação das
organizações locais, que nos enviaram uma quantidade muito grande de episódios
de violência policial, sobretudo com relação a revistas policiais. São
denúncias de policiais abordando moradores de forma muito truculenta, tanto na
rua como dentro de casa, com agressões, xingamentos, furtos de objetos ou de
dinheiro. Então começamos, no final do ano passado, uma campanha na Maré
chamada Sou da Maré e Tenho Direitos, dizendo o que a polícia pode e não pode
fazer no ato da revista, chamando a atenção dos moradores e da própria polícia.
Há um nível bom de diálogo nosso com as
organizações e sempre que eles se encontram conosco, os comandantes dizem que
querem controlar os problemas, mas há uma lacuna muito grande entre essas falas
da cúpula da polícia e o trabalho policial como ele de fato ocorre com o guarda
na esquina, sobretudo quando essa esquina fica numa favela. Então o caso do
Amarildo não é isolado, volto a dizer. Inclusive o número de desaparecimentos
tem aumentado, mesmo depois das UPPs, quer dizer, as UPPs não conseguiram
resolver isso.
O caso dele só chamou a atenção porque aconteceu
num momento em que a sociedade está mobilizada. Se isso tivesse acontecido há
um ano, não teria nem sido noticiado. Teria entrado simplesmente nas
estatísticas, como mais um homem negro e pobre no Brasil, que é morto e
desaparece, ninguém sabe, ninguém viu.
É claro que as pessoas que fizeram isso com ele –
sejam quem forem essas pessoas, sejam policiais, sejam traficantes – não imaginaram
que [o caso] teria essa repercussão. Amarildo virou um símbolo muito poderoso.
Virou uma história que exemplifica de modo trágico os principais dramas e
contradições da política de segurança pública do Rio de Janeiro.
Como a Anistia recebeu o resultado da segunda fase
do julgamento do chamado ‘massacre do Carandiru'?
É o segundo julgamento deste ano e nos dois casos
foram passos à frente importantes. Nos dois julgamentos – e gostaria de
ressaltar bem esse ponto – tivemos júris populares condenando policiais por
terem executado pessoas que estavam presas. Isso é um divisor de águas porque
sinaliza que pelo menos setores da sociedade brasileira não estão mais
dispostos a aceitar a brutalidade policial, mesmo quando ela é exercida contra
pessoas que estavam na cadeia.
Isso é um sinal grande de que a sociedade
brasileira está perdendo a tolerância com esse tipo de brutalidade. Os valores
no Brasil estão mudando, a consciência da sociedade brasileira está mudando.
Esse é o ponto positivo.
O primeiro ponto negativo é que nenhum dos
julgamentos do Carandiru envolveu a responsabilidade política. Todos eles
jogaram a responsabilidade desse massacre nos policiais, nas pessoas que
executaram a operação, mas não existe uma apuração sobre a responsabilidade do
secretário de segurança, a responsabilidade do governador do estado. Quem deu a
ordem? O que era pra fazer exatamente? Isso deveria ter sido um elemento
importante desse julgamento.
O segundo ponto negativo é o tempo que levou até
esses julgamentos acontecerem. Estamos falando de um intervalo de 21 anos. Na
verdade, muitos dos réus já morreram. Quando se leva 20 anos para ter esse tipo
de condenação – que ainda está sujeita a recursos – isso também é um elemento
que incentiva muito a impunidade.
Durante o julgamento, o papel da polícia, tanto nos
presídios quanto nas ruas, veio à tona. A defesa alegou, entre outras coisas, a
falta de estrutura da PM na época, que não forneceria segurança suficiente para
os 360 policiais que invadiram o pavilhão 9. A polícia evoluiu – tanto em
estrutura quanto em táticas – desde o massacre do Carandiru até hoje,
acompanhando a evolução mencionada pelo senhor na mentalidade da população
brasileira?
Existe uma distância grande entre a polícia e a
sociedade brasileira, mas a polícia também não está isolada da sociedade. Ela
também muda, ela também reflete as transformações da opinião pública. O
problema é que a polícia tem mudado numa velocidade muito mais lenta do que o
resto da sociedade brasileira. Houve, nesses últimos 20 anos – do Carandiru
para cá –, vários processos importantes de reforma na polícia.
Eu já citei as UPPs, mas há uma série de outras
tentativas de se criar uma polícia marcada por um trabalho sério de
investigação e de prevenção. Eu também não quero generalizar e dizer que todos
os policiais têm essa cultura da violência, porque não acho que seja assim. A
importância dessa agenda da reforma policial é um tema que está em discussão
dentro da própria polícia, agora com mais força por causa dos protestos no
Brasil.
Com essa polícia não dá, com o tipo de instituição
que temos hoje no Brasil, o modo como as polícias estão organizadas, isso
incentiva o que a polícia tem de ruim e dificulta muito o trabalho dos bons
policiais, das pessoas que querem fazer algo diferente. E existem muitos
policiais que querem algo diferente.