Racismo no Brasil choca relatora da OEA sobre direitos das
mulheres e afrodescendentes
Date: 06/10/2016
in: Casos de Racismo, Mulher Negra, Projetos em Andamento
Responsável pela fiscalização do cumprimento das leis e
tratados internacionais que regulam os direitos de mulheres e negros nos países
integrantes da Organização dos Estados Americanos (OEA), a jamaicana Margarette
Macaulay chegou a questionar se o Brasil seria efetivamente uma democracia,
diante do nível das violações cometidas contra nacionais, ou permitidas pelas
instituições brasileiras por omissão, e que foram relatadas a ela em audiência
pública.
Por Luciana Araújo, da Agência Patrícia Galvão
Foi encerrada no último
dia 30 de setembro a missão oficial da comissária da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre os
Direitos das Mulheres e das Pessoas Afrodescendentes, Margarette May Macaulay.
A relatora atua com direitos humanos desde 1966 e já foi juíza da CIDH antes de
assumir as relatorias atuais. Mesmo assim, na audiência pública promovida pelo
Geledés – Instituto da Mulher Negra em São Paulo, a relatora ficou com os olhos
marejados ao menos três vezes durante as duas horas e meia de relatos, em que
doze mulheres contaram suas múltiplas experiências de violência institucional e
violações de direitos.
Eram em sua maioria
vítimas do Estado cujas vidas foram marcadas pelo racismo institucional que
lhes tirou os filhos, assassinados por policiais militares. Mas havia também
mulheres que romperam o ciclo da violência doméstica, mulheres em situação de
rua, vítimas de violência sexual, lésbicas e trans que enfrentam cotidianamente
a intersecção das discriminações de raça, gênero e classe social.
Nilza Iraci fala na
audiência, com a relatora Margarette Macaulay ao centro e a psicóloga Maria
Lúcia Silva (Fotos: Luciana Araújo).
Geledés – Instituto da
Mulher Negra, Criola e a Articulação de Organizações de Mulheres Negras
Brasileiras (AMNB) realizaram a rodada de audiências públicas com a relatora da
OEA para apresentar os dados do Dossiê A Situação dos Direitos Humanos das
Mulheres Negras no Brasil: Violências e violações, lançado em agosto. A ação
ocorreu em parceria com o Instituto de Raça, Igualdade e Direitos Humanos.
“O mais importante era
que ela pudesse visualizar as pessoas que estão por trás dos números
apresentados no Dossiê. Essa violência que tem cor, classe, pessoas, dores,
sonhos interrompidos”, ressalta Nilza Iraci, coordenadora do Geledés e da AMNB.
A estratégia deu certo:
a relatora Margarette Macaulay declarou que foi “muito importante olhar no
olho, porque isso dá mais força aos dados e relatos que recebemos”. O Dossiê já
havia sido apresentado na OEA em agosto.
Ódio heteronormativo
Lésbica, negra e pobre,
Luana Barbosa dos Reis foi espancada por PMs na frente do filho de 14 anos até
sofrer politraumatismo craniano, fraturas nas pernas e braços e perder a visão.
Luana morreu depois de cinco dias em coma. “Eles ainda forçaram a cabeça do meu
sobrinho contra o vidro da viatura para obrigá-lo a ver a mãe apanhando lá
dentro”, relatou Roseli, ao relatar as violências cometidas pelos policiais
contra a irmã.
Roseli Barbosa dos Reis
As residências de Luana
– onde vivem sua mãe, irmã e o filho – e da namorada dela também foram
invadidas sem mandado por policiais que afirmavam procurar indícios de
envolvimento com o narcotráfico. A jovem foi deixada somente de cueca e top
durante o tempo que permaneceu na delegacia, e ainda foi acusada de “agredir” e
“desacatar” os policiais que a abordaram, por ter se recusado a ser revistada
por homens. “Se ela tivesse sobrevivido, ia ter que responder. Eles obrigaram
ela a assinar o termo circunstanciado, apesar de constar lá que ela nega”,
protestou Roseli.
Mesmo diante deste
quadro o juiz Luiz Augusto Freire Teotônio, da 1ª Vara do Júri de Ribeirão
Preto, negou o pedido de prisão temporária dos autores sob a alegação de que
não teria havido dolo. O caso foi remetido à Justiça Militar.
O assassinato de Luana
consta do Dossiê entregue à relatora da OEA, onde há um capítulo sobre as
violações e violências promovidas pelo ódio heteronormativo. “As imagens que
revelamos no Dossiê são muito fortes, evidenciam que para os autores não basta
o discurso do ódio, é preciso mutilar as vítimas”, explica Nilza Iraci.
Neon move uma ação
contra o Estado brasileiro pelo direito ao nome social sem se submeter ao
processo atual, que exige autodeclaração de transtorno mental das pessoas
trans.
Em seu testemunho, a
transexual Neon Cunha sintetizou o que a crueldade verificada nos crimes contra
mulheres transexuais e travestis revela sobre a sociedade brasileira. “Somos um
país que precisou, em 2015, aprovar uma lei de feminicídio. Este é um país
misógino, que odeia a mulher, odeia a mulher negra e odeia, acima da mulher
negra, a mulher trans. Meu maior crime hoje é que ousei ser mulher”, denunciou.
Neon lembrou que em
1987 a Prefeitura de São Paulo promoveu com a Polícia Civil a operação
Tarântula para “limpar as ruas” de travestis e transexuais. A história da
Operação Tarântula é contada no premiado documentário “Temporada de Caça”,
produzido em 1988 por Rita Moreira.
“Era o extermínio da
população de mulheres trans, travestis e transexuais e de homossexuais
masculinos”. Ela destacou que hoje, embora de forma não oficial, crimes
cometidos por agentes do Estado contra a população LGBT continuam acontecendo,
como evidenciam as agressões contra Verônica Bolina quando estava sob custódia
prisional. Na audiência, Neon alertou que a omissão das instituições estimula a
violência individual contra transexuais e travestis.
Apesar de o país não
ter nenhum sistema oficial de monitoramento das mortes violentas relacionadas à
lesbofobia, homofobia e transfobia, levantamentos feitos pela ONG Transgender
Europe, a partir de material publicado por veículos noticiosos, colocam o Brasil
como o país que mais mata a população trans. Desde 2008 a 30 de abril deste ano
845 pessoas trans foram assassinadas no país (42% dos casos em todo o mundo).
Invisíveis entre os
invisíveis
Representando outro
segmento social de mulheres negras a denunciar sua invisibilidade social, Mara
Sobral dos Santos destacou a falta de preparo dos agentes do Estado para lidar
com as violações que a população em situação de rua sofre.
“Faço parte de um
coletivo de mulheres moradoras de rua. Nós não temos estatísticas, não temos
B.O., não temos registro. Nós não existimos. Ninguém vai ouvir uma mulher
moradora de rua dizer que foi estuprada dentro de uma obra por oito homens.
Ninguém ouve uma moradora de rua até porque não nos consideram mulher. Sou uma
mulher negra e lésbica e sofro violência todo dia. Acordo três horas da manhã e
subo no meu caminhão para trabalhar, mas não posso usar um banheiro na rua
porque está sempre ‘quebrado’. Não consigo comer em um restaurante porque estou
sempre suja no meu trabalho. E não tenho direito de trocar um absorvente, tenho
que subir dentro do caminhão para trocar porque não existe banheiro público
para a população de rua”, denunciou.
As mulheres negras e o
genocídio da juventude
Margarette Macaulay
fala durante a audiência em São Paulo, tendo à sua frente lenço que mostra
imagens de mortos nos Crimes de Maio.
Vítimas sobreviventes
de chacinas promovidas por policiais fora de serviço ou em ações oficiais, seis
mulheres relataram o horror de viver em áreas periféricas onde a condição
racial é traduzida pelo Estado como sinônimo de suspeita e culpa. Uma delas foi
Rosana de Souza, mãe do jovem Douglas Rodrigues,assassinado em novembro de 2013
na Vila Medeiros por um PM e que teve como últimas palavras a pergunta: “Por
que o senhor atirou em mim?”.
Também estavam
presentes mulheres que integram o Movimento Mães de Maio e outras cujos nomes
não são mencionados para preservar a sua segurança e que relataram aos prantos
seu sofrimento.
“Eles não mataram só os
meninos, crianças, jovens, pobres favelados e periféricos. Mataram também as
mães. Nós somos umas mortas vivas”, disse uma delas.
“Nós temos que pedir
ajuda fora do Brasil, porque no Brasil não se faz justiça, principalmente para
negros. Nós estamos sendo caçados. Principalmente no Estado de São Paulo. Não
aguentamos mais. Temos que trazer pessoas de fora para ver nossa realidade. A
marcha fúnebre que prossegue em nosso país é encoberta pela mídia, pelos nossos
vereadores e deputados. O Brasil é um país genocida, mas não vamos nos calar
enquanto a gente não tiver respeito”, frisou Débora Maria da Silva,
coordenadora do movimento Mães de Maio, que exige a punição dos responsáveis
pela morte de mais de 600 jovens, em sua maioria negros, por policiais
militares entre os dias 12 e 19 de maio de 2006, em São Paulo. No ano passado,
os chamados crimes de maio foram denunciados à OEA.
A anulação do
julgamento dos 74 PMs envolvidos no Massacre do Carandiru – quando 11 presos
foram brutalmente assassinados durante uma invasão do presídio de mesmo nome
pela tropa de choque após uma rebelião contra as condições subumanas a que eram
submetidos os detentos, no dia 2 de outubro de 1992 – também foi lembrada
durante a audiência como mais uma violação de direitos eivada de racismo às
populações negra e pobre e às mulheres negras. Mães, companheiras, irmãs e
demais familiares daqueles homens executados em sua maioria com mais de cinco
tiros na nuca e cabeça até hoje esperam que os responsáveis sejam punidos. A filha
de uma das vítimas entrou nesta segunda-feira (3) com uma ação contra o Estado
de São Paulo em razão das declarações do desembargador Ivan Sartori, relator do
caso, de que teria havido “legítima defesa”, conforme noticiou a Agência Ponte
Jornalismo.
Vivemos em uma
democracia?
“O que está acontecendo neste país? Ainda é
uma democracia? Para mim claramente não é, se a polícia age com tamanha
crueldade impunemente, sabendo que tem a proteção do Estado! E qualquer governo
que permite isso também não é um governo democrático!”
declarou Margarette
Macaulay, ao interromper pela primeira vez a sessão para afirmar que é
necessário acabar com esse tipo de impunidade.
Sobre o caso de
feminicídio cometido por policiais militares contra Luana Barbosa dos Reis, a
representante da OEA destacou que a reação da jovem à revista policial foi
“completamente legal. Ela tinha o direito de fazer isso. E os juízes ainda
dizem que não havia intenção de matar? Que juízes são esses?”, questionou
irritada.
O racismo institucional
e a Lei Maria da Penha
Em relação aos casos de
violência doméstica apresentados, Margarette Macaulay frisou que são produto de
uma lógica social que educa os homens a pensarem “que têm a posse física e
sexual das mulheres”. O racismo institucional na implementação da Lei
11.340/2006 também foi percebido por Macaulay nos relatos ouvidos nas audiências
realizadas em Salvador e no Rio de Janeiro na mesma semana, o que fez a
relatora defender que a Corte Interamericana de Direitos Humanos deve
questionar o Estado brasileiro acerca do cumprimento das legislações e
tratados, bem como da “forma discriminatória” como a Lei Maria da Penha vem
sendo aplicada para as mulheres negras. - Leia a matéria completa em: http://scl.io/Ukbr9CYr#gs.b9DXZCw